Meu celular despertou,
eram 17h30, as aulas começariam às 18h30. Levantei-me sonolenta. Da janela do
meu quarto apenas se via os pequenos, inúteis e frágeis raios de sol que ainda
estavam se pondo. Mesmo tão transparentes e pouco luminosos, olhar para eles
fazia com que meus olhos ardessem e lacrimejassem. Me deprimi. Depois de ter
vindo para cá tudo está mais sensível, mais dolorido e por causa disso comecei
a perder os espetáculos naturais mais lindos.
Eu amava acordar, pouco
antes do sol para vê-lo nascer. Lembrava meus avós e assim carinho e aconchego.
Saíamos pela porta da cozinha que dava para o quintal e caminhávamos sobre a
grama úmida, arrancando o orvalho das plantas e gelando nossas canelas.
Sentávamos numa toalha, próximo a um carvalho velho e forte centralizado no
quintal, vovô com sua xícara de café e vovó e eu com seu antigo bule de
porcelana cheio de chá, os biscoitos feitos bem a noitinha estavam ali a nosso
dispor. E o sol começava a se exibir, lentamente, como quem não quer nada e
pouco tempo depois já está todo poderoso e glamoroso no céu.
Agora sou presa. Não posso
sequer vê-lo se pondo. Meu corpo se enfraquece e meus olhos ficam doloridos, os
raios tocam minha pele e ela arde, é tão insuportável que me dá vontade de
chorar. Sou um MONSTRO! E estou presa! Dentro deste lugar, dentro de mim! Será
que posso me salvar? Sequei minhas lágrimas antes que caíssem. Chorar não me
“destransformaria” e suspirando fui ao banheiro.
Tirei meu pijama, coloquei
um jeans escuro e uma camiseta azul-marinho, lavei o rosto, escovei os dentes e
fui ajeitar minha cama. Sai do quarto e desci as escadas, quase sem pressa,
caminhei até a porta do refeitório. Não tinha ninguém e aquilo era perfeito.
Peguei um copo de leite com achocolatado e algumas bolachas recheadas, fui até
uma das mesas, me sentei e comecei a comer. Era horrível, me dava ânsia, não
conseguia engolir. Larguei metade do café na cozinha e voltei para meu quarto,
peguei o caderno, um pequeno estojo que tinha trago e deixei-os separados. Encarei
a janela de novo.
Ainda pude ver uma pequena
luminosidade e que ainda me causaram dor, mas dessa vez era suportável. Olhei
para o chão. A minha janela ficava de frente a uma floresta cheia de árvores
grossas que pareciam ser centenárias, eram belas, viçosas e mesmo com a altura
pude sentir um cheiro bom, cheiro de planta. Ouvi algumas batidas na porta,
tinha certeza que era Will. Desencostei-me da janela e após alguns passos meu
estômago se contraiu, senti tontura e logo o chão não estava mais lá. Cai de
joelhos e me apoiei na cama com uma das mãos no estômago.
-Kelly? Estou entrando...
– Will abriu vagarosamente a porta e ao me ver ajoelhada aos pés da cama entrou
rápido – Kelly, por favor, me diga que tomou o sangue! – Ele estava bravo e
preocupado.
-Não preciso daquilo.
Estou bem – Tentei me levantar, mas minhas pernas fraquejaram.
-Estou vendo! Já volto – Caminhou até a porta.
-Está dentro da mochila –
Levei a mão aos olhos.
-Eu te disse que era
importante
-Mas é nojento! – Gritei
com as forças que me sobraram.
-Entenda que agora você
não é mais humana, você não é como antes! – Willian pegou a bolsa de sangue e
caminhou até mim – Ande logo – Pressionei os lábios um contra o outro e fiz
negação com a cabeça
Will me olhava como se já
esperasse aquilo, arrancou o biquinho de plástico da bolsa de sangue e a
aproximou de mim. Tinha um aroma doce e era tão bom que me arrepiou. Estremeci
e quase arranquei a mão de Willian ao pegar a bolsa. Aproximei-a do meu nariz e
inalei, não queria ingerir. Vi Will respirar profundamente para manter a calma
e se levantou. Inspirei de novo e de repente tudo ficou preto. Uma imagem meio
transparente mostrou Willian conversando com uma mulher de cabelos ruivos,
ambos estavam sérios e ela aparentava ter chorado muito. Sua voz ecoou através
dos meus ouvidos: “Não vá Will, eles estão morrendo. Nós vamos morrer!”.
Tudo voltou, Willian me
encarava assustado, se aproximou com preocupação e me tocou nos ombros.
-O que aconteceu? Seus olhos ficaram mais claros e jurei que você ia cair no
chão.
-Ficou tudo escuro e vi
você com uma mulher.
-Com quem?
-Era uma mulher ruiva e
ela estava dizendo que alguém tinha morrido e que vocês iriam morrer. O que foi
isso Will? – Respirei pesadamente.
-Acho que você teve uma
visão. Não se preocupe. Está se sentindo bem?
-Sim. Foi estranho. Não
podemos deixar ninguém morrer.
-Vamos cuidar disso, não
se preocupe – Ele se levantou e ficou me olhando.
Assenti com a cabeça e
olhei para a bolsa de sangue. Senti minhas presas aumentarem e virei a bolsa.
Engoli até a última gota, foi uma das melhores sensações da minha vida. Era tão
saboroso. Senti como se estivesse dependendo daquilo pra respirar, como se
estivesse sugando a vida, foi como se estivesse renascendo.
Um calor subiu, estava
definitivamente energizada dessa vez. Por hora me senti um felino, como se
pudesse saltitar para qualquer lugar. Voltei a mim, os olhos de Willian
pareciam pratas arregaladas e sua pupila era fina, como a de um lince.
-Will? – Chamei-o e ele
voltou a si.
-Desculpa – Ele chacoalhou
a cabeça – O que achou?
-Não é tão ruim assim – Me
levantei e caminhei até ele.
-Amanhã vamos caçar – Ele
limpou o canto da minha boca com o polegar.
-Caçar?!
-Sim, ou você pensa que só
bolsas de sangue nos satisfaz?
-Eu pensei que... De onde
vem esse sangue?
-Fazemos algumas invasões
no banco de sangue às vezes.
-Vocês roubam sangue? Isso
é crime!
-Nenhum humano vai querer
ceder seu sangue pra nós, eles nem sabem da nossa existência, não há problema.
Agora vamos para as aulas.
-Tá – Peguei meu caderno.
-Você não vai precisar
disso – Ele tirou das minhas mãos e colocou sobre a escrivaninha – São aulas
práticas.
-Práticas?!
Will assentiu, acenou para
que eu o seguisse e nós descemos as escadas e fomos para fora. Viramos no lado
pouco iluminado e caminhamos um pouco até chegar a uma arena que se assemelhava
a um campo de futebol.
Tinha alguns vampiros
adolescentes, assim com eu. Não eram muitos, mas se aproximavam de vinte.
-Há uma coisa que eu esqueci
de contar. Todos os vampiros são transformados aos 17 anos, porém só se tornam
adultos aos 20, até aí vocês envelhecem normalmente. Então não se preocupe, vai
fazer alguns amigos – Will puxou o portão e com a outra mão nas minhas costas
praticamente me empurrou para dentro – Divirta-se, venho te buscar depois – Com
um sorriso maldoso saiu de lá.
O professor, se é que era
chamado assim, parecia um armário ambulante. Suas costas tinham o dobro do meu
tamanho, ele era alto e cada braço equivalia aos meus dois juntos. Cabelos
claros e não muito longos, cortados no pescoço acompanhavam um chamativo par de
olhos castanhos claros e o sorriso era conquistador.
-Oi, sou Thiago – Um
garoto parou na minha frente. Ele tinha cabelos negros curtos e olhos azuis escuros
da cor da noite. Seus dentes eram mais brancos que o tom da sua pele e seu
sorriso era indescritível. Os ombros eram um pouco largos e seus braços estavam
ainda se definindo.
-Kelly, prazer.
-Você acabou de ser
transformada não é?
-Sim – Sorri um pouco
envergonhada.
-Acho que você vai querer
companhia para essa aula, se importa?
-Claro que não.
Thiago me lançou um
sorriso e o professor gesticulou. Todos os alunos ficaram quietos e ele começou
a aplicar alguns aquecimentos, quais eu conheci nas aulas de educação física.
Depois disso ele nos mandou fugir, tinha uma expressão tão séria que tive medo
de ser verdade. Todos saíram correndo, pulando nas árvores. Sem saber ao certo
o que fazer, segui Thiago. Ele corria muito rápido e eu já estava sem fôlego,
então ele pulou em uma das árvores, num salto só ele já estava em um dos galhos
da árvore, olhou pra baixo e esticou sua mão.
-Suba!
-Como? – Senti meus olhos
arregalados, minha barriga estava tão gelada que não sentia mais nada.
-Pula!
-Eu não consigo – Meus pés
estavam grudados ao chão, eu mal respirava.
-Então corre! – Ele ficou
me olhando enquanto eu processava sua fala. Olhei para frente e já não via
quase ninguém. Assim que comecei a correr um par de mãos me agarrou pelos
ombros. Eram mãos enormes e fortes, não consegui me soltar, não consegui
gritar.
-Tarde demais – A voz
áspera soou nos meus ouvidos e comecei a ser arrastada de volta ao campo. Ele
não estava me apertando, talvez conseguisse fugir, mas ele provavelmente me
alcançaria.
Assim que retornamos, ele
me amarrou junto a uma grade com uma corda bem grossa e vários nós. Ele me
olhou e sorriu.
-Esse é um treinamento de
fuga, os mais velhos atacam ás vezes – Bagunçou meus cabelos – Não se preocupe,
os novatos são mesmo pegos, por isso sempre aconselhamos que alguém os ajude.
Deixe-me ir assustar o resto – Se virou e saiu.
Eu acho que estava em
choque, o professor ao mesmo tempo em que dava medo era simpático. Eu o
observei se afastar lentamente e parecia farejar o ar. Por sorte minhas mãos
são pequenas e deslizaram rapidamente pela folga de um dos nós, peguei a corda
e corri atrás dele, não sei o que passava pela minha cabeça, talvez segurá-lo,
impedi-lo, qualquer coisa, mas antes que eu pensasse em amarrá-lo ele se virou e
me olhou assustado.
-Caramba, como você
escapou? – Estava sorrindo.
-Você deixou uma folga
muito grande.
-Então vem me ajudar, vai
ser bom – Ele tomou as cordas da minha mão e me guiou por uma mão no meu ombro –
Uma dica, não tenha medo. Medo de pular, de farejar, o medo nos impede. Ele
toma todos os dons que são nossos de natureza.
-Coragem?
-Sim, coragem é só o que
você precisa – Deu um sorriso de lado – Vá pegar Thiago, te espero aqui com sua
caça.
-Sim senhor – Sorri de
volta e caminhei apressadamente farejando-o.
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