segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Capítulo Cinco - Acostumando-me

-Não sei. Que tal TV?
-Não temos TV.
-Não?! – Will riu da minha reação – E computador?
-Também não.
-Internet? Nem nada?
-Nada.

-Como não?
-Pra que você precisa disso?
-Pra falar com meus amigos, pra dizer que eu estou bem.
-Eles não precisam saber – Willian debochou – Eles têm que achar que você morreu.
-Talvez estejam preocupados!
-Quem? Seus parentes? – Will aparentava estar irritado e eu senti as palavras como um soco na boca do estômago.

Senti meus olhos marejarem e abaixei a cabeça para que ele não visse. Apertei os olhos e respirei fundo.

-Não, Kelly, me desculpa. Não foi isso que eu quis dizer. – Ele tocou meu ombro.
-Tudo bem – Passei a mão nos olhos e levantei a cabeça.

Will me encarou, firmemente. Senti culpa nos olhos dele e até tristeza. Repentinamente foi como se Willian tivesse se tornado uma criança desolada. Ele fechou os olhos suavemente. Abracei-o e ele apoiou a cabeça sobre a minha.

-Tá tudo bem Will, não foi nada.
-Vamos conversar sobre isso Kelly. Acho justo. – Soltou-se do abraço e puxou minha mão escada a cima.
-Sobre o que, Will? – Ele começou me puxar rápido, olhei para os degraus com medo de tropeçar.
-Sobre seus pais. – Paramos no segundo andar e Will abriu a porta do que parecia ser um escritório. Ele pegou dois livros grossos de capas pretas e colocou sobre a escrivaninha. Sentou-se na cadeira atrás dela e eu me sentei numa poltrona branca almofadada perto da mesa.

O escritório tinha paredes claras, no tom de areia, perto da única janela tinha um vaso de lírio da paz, apenas com um botão jovem e suas folhagens largas e bem verdes se destacavam na sala. As cortinas tinham tecido marrom escuro, mas estavam amarradas na lateral. À direita tinha um armário com portas pequenas, parecia àquelas gavetas onde se guardam evidências em delegacia. À esquerda tinha uma estante cheia de livros, pastas e na parte inferior havia duas portas pequenas. Foi de lá que Will tirou os livros. A escrivaninha era escura e a cadeira que ele estava sentado também.

-Você sabe o que aconteceu com eles? – Arrisquei perguntar enquanto olhava para minhas mãos apoiadas nas minhas pernas.
-Seu pai se mudou para nossa rua um pouco antes de sua mãe fazer 15 anos. Nós conversávamos muito e eles acabaram se aproximando – Ele fez uma pausa e riu um pouco – Eu fiquei tão enciumado que na festa de aniversário dela eu levei uma menina que ela não gostava. – Ele abriu um livro e vi que era um álbum de fotos. Will levantou-o e me mostrou uma foto. Nela havia um garoto ajoelhado. Ele usava um terno e segurava a mão de uma menina de cabelos castanhos claros vestida num vestido de debutante cor de rosa. Eles eram meus pais. – Depois dos parabéns ele se ajoelhou e perguntou se ela aceitava ser a mulher dele para o resto da vida.
-Que lindo.
-Dois anos depois seu pai foi transformado. Ele fugia daqui algumas noites pra encontrar sua mãe.
-Papai foi vampiro? – Coloquei os pés em cima da poltrona.
-Sim. Na pré-transformação os vampiros ainda tem alguns comportamentos humanos, isso acaba quando se chega aos 20 anos. Antes do seu pai se transformar totalmente sua mãe descobriu que estava grávida. E assim que você nasceu ele passou pela transformação completa e teve que parar de encontrar com ela. Sua mãe ficou arrasada, ela pensou que seu pai fosse a abandonar pra sempre. Você estava com cinco meses quando seu pai apareceu à noite no meu quarto pra me transformar. Depois ele pediu pra ir te ver e sua mãe acabou acordando, ele teve que contar tudo.
-E a minha mãe teve que morrer por saber de tudo?
-Não. Depois disso acabou acontecendo várias reuniões e queríamos transformar sua mãe, mas ela corria o risco porque não iria passar pela pré-transformação.
-Ela foi transformada?
-Foi. Mas ela começou a ter febre alta com muita frequência, ela perdia o controle quando sentia cheiro de sangue. Trouxemos você junto com ela e um dia Tab teve uma crise, surtou. Te levou pra cidade, deixou você com a mamãe e simplesmente sumiu. Ninguém queria aceitar, mas não teria como ela sobreviver sem que nós soubéssemos...
-E meu pai?
-Ele começou se culpar pelo que aconteceu com sua mãe. Ele quis ir atrás dela, mas nós conseguimos convencê-lo de ficar e cuidar de você.
-E por que ele sumiu também?
-Ele não conseguiu se recuperar da ausência da sua mãe e então parou de tomar sangue e ficou frágil. Ele ficou com raiva dos vampiros e disse que aqui não era lugar pra você, te levou outra vez pra morar com a sua avó e me obrigou a ir junto. Quando Heitor descobriu que eu estava morando na cidade tive que voltar.
-Que explicação você deu à vovó?
-Ela acha que eu fui morar na universidade junto com seu pai e depois levamos Tabata. Só que achamos que não era muito bom pra uma criança e Tabata te levou, seu pai estava de “férias”, ele e sua mãe foram te buscar pra viajar e depois perceberam que você fazia falta. Eu, aparentemente, me formei e até conseguir um emprego fui pra lá com você, seus pais estavam ocupados e você teve que ficar.
-Vovó não está preocupada comigo?
-Ela já deve desconfiar de algo, querida. Não se preocupe. – Willian me lançou um sorriso confiante.
-Isso é deprimente Will. Não é justo com a vovó perder dois filhos, o genro e a neta.
-E o marido.
-Vovô?
-Sim, meu pai também sumiu da noite para o dia, mas ele não foi vampiro.
-Por que fazemos isso com a vovó?
-Não temos escolha. Heitor é bem rigoroso, muito detalhista. Ele sempre faz a escolha certa.
-Quem é esse tal de Heitor? – Will deu uma risadinha como quem não quer nada.
-Heitor é o nosso mestre. O mais sábio dos vampiros.
-Ele quem toma as decisões?
-Sim, ele manda e desmanda.
-Ainda acho injusto com a vovó.

No instante em que Willian ia rebater outra vez, ouvimos algumas batidas na porta.

-Entre. – Will tirou os olhos de mim lentamente até direcioná-lo a porta que se abriu vagarosamente.
-Com licença – Uma moça muito bonita deu um passo adentro. Estava com uma calça, uma camiseta e um jaleco brancos, tinha um estetoscópio pendurado no pescoço e estava com uma lista na mão. Seus cabelos escuros estavam presos por cima e seus olhos castanhos tinham um brilho diferente, era como se fossem escuros e claros ao mesmo tempo. Eles ficaram um pouco arregalados quando ela me viu sentada em frente a Will – Estou atrapalhando?
-Não Júlia, de modo algum. Essa é Kelly, a nossa novata. Kelly, ela é Júlia, uma de nossas enfermeiras.
-Olá Kelly, seja bem vinda. – Ela me lançou um sorriso meigo e se aproximou mais da mesa de Willian.
-Obrigada. – Abracei minhas pernas e apoiei meu queixo sobre os joelhos e fiquei os observando.
-Cristina me pediu pra te entregar essa lista de algumas coisas que estão acabando na enfermaria. Ela disse que há um pouco de urgência. – Ela esticou o papel para Willian que segurou na outra extremidade da folha. Um sorriso enorme brotou no rosto dos dois.

Willian fez alguma pergunta para ela, mas eu não ouvi. A sensação que eu tinha tido pouco antes de tomar sangue voltou. Me desfoquei da realidade e uma imagem com certa transparência revelou os dois, eles estavam em pé, num lugar que eu não conhecia, seus rostos estavam próximos, Will acariciava o rosto dela com as costas da mão. Eles se encaravam firmemente e parecia que não queriam sair de lá nunca. Então Júlia me encarou, parecia real e a imagem sumiu.
Os dois riram um pouco e se despediram, Júlia me deu um sorrisinho e murmurou um tchau, caminhou rapidamente até a porta e a fechou. Willian a encarou até o momento que o trinco da porta fez um barulho, sinalizando que havia sido fechada.

-Você teve outra visão, não foi?
-Foi, como sabe?
-Seus olhos mudam quando isso acontece. – Ele tocou um lápis no porta lápis e me olhou novamente – O que você viu?
-Não foi nada de importante. –Balancei os ombros.
-O que era? – Ele me olhou desconfiado.
-Você gosta dela?
-Não, nós somos só amigos. De onde tirou essa ideia? – Willian não parecia mentir.
-Só perguntei. – Suspirei – Ainda acho injusto com a vovó. – Levantei o pescoço ainda abraçando as pernas – Tenho saudades dela.
-Eu sei, eu também sinto saudade, mas não podemos fazer nada.
-Por que não a trazemos?
-Ela poderia ser atacada.
-E se a transformássemos?
-Sua mãe mal tinha completado 20 anos e teve dificuldades, imagine minha mãe!
-Transformar com 17 anos é mesmo importante?
-Sim, a pré-transformação é essencial. Leva tempo até o organismo se acostumar com as mudanças.
-E por que eu fui transformada?
-Para que possamos te proteger.
-Proteger do que?
-Dos perigos do mundo. – Will desviou o olhar e encarou o álbum – Nossa família era tão perfeita e de um momento para o outro desmoronou. Papai sumiu, não sabemos se ele foi capturado por humanos ou se fugiu. Você se lembra dele?
-Sim, me lembro um pouco.
-Faz dez anos que ele te deixou com a mamãe – Will suspirou – Tabata era tão linda. Éramos tão próximos, ela e seu pai seriam o casal perfeito. No fim, todos viramos criaturas da noite.
-Você não gosta de ser vampiro?
-Eu gosto, mas tudo poderia ser diferente.
-Mas por algum motivo não foi. Se estamos aqui é porque há um propósito. Podemos não ser mais humanos, mas ainda somos uma família e ninguém vai mudar nada – Abaixei as pernas e me levantei – A menos que você se apaixone e esqueça de mim – Ri e me aproximei da mesa.
-Nunca vou te abandonar Kelly – Will sorriu.
-Muito bem – Fiz uma cara séria e depois rimos, peguei os dois álbuns – Posso?
-Claro, mas traga-os de volta.
-Tá bem – Caminhei até a porta com os dois álbuns num braço só. Sai do escritório de Will. Caminhei até a escada e antes de descer o primeiro degrau ouvi uma voz familiar atrás de mim.
-Kelly, quer ajuda? – Thiago se aproximou estendendo a mão.
-Ah, não precisa – Me virei para ele e então Thiago tomou um dos álbuns do meu braço – Obrigada.
-Pra onde vai levar isso?
-Quando cheguei vi os banquinhos lá em baixo e me encantei. Estava querendo voltar lá. – Comecei a descer.
-E o que é isso? Vai estudar? – Ele desceu rapidamente até me alcançar e começou me acompanhar.
-Não exatamente – Sorri.
-Acabou de chegar e já vai aprontar?
-Não! – Ri e ele riu de mim.
-Quer que eu leve os dois? Eles são pesados.
-Não precisa Thiago, eu aguento.
-Ah, é mesmo.
-Você guarda rancor? – A escadaria acabou e caminhamos até a porta enquanto ria. Thiago me olhava fixamente como se estivesse bravo comigo, passou na minha frente, abriu a porta e me deixou passar.

Caminhamos um pouco até chegarmos ao banco. Sentei-me e ele sentou-se ao meu lado.

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