-Não sei. Que tal TV?
-Não temos TV.
-Não?! – Will riu da minha reação – E
computador?
-Também não.
-Internet? Nem nada?
-Nada.
-Como não?
-Pra que você precisa disso?
-Pra falar com meus amigos, pra dizer
que eu estou bem.
-Eles não precisam saber – Willian
debochou – Eles têm que achar que você morreu.
-Talvez estejam preocupados!
-Quem? Seus parentes? – Will
aparentava estar irritado e eu senti as palavras como um soco na boca do
estômago.
Senti meus olhos marejarem e abaixei a
cabeça para que ele não visse. Apertei os olhos e respirei fundo.
-Não, Kelly, me desculpa. Não foi isso
que eu quis dizer. – Ele tocou meu ombro.
-Tudo bem – Passei a mão nos olhos e
levantei a cabeça.
Will me encarou, firmemente. Senti
culpa nos olhos dele e até tristeza. Repentinamente foi como se Willian tivesse
se tornado uma criança desolada. Ele fechou os olhos suavemente. Abracei-o e
ele apoiou a cabeça sobre a minha.
-Tá tudo bem Will, não foi nada.
-Vamos conversar sobre isso Kelly.
Acho justo. – Soltou-se do abraço e puxou minha mão escada a cima.
-Sobre o que, Will? – Ele começou me
puxar rápido, olhei para os degraus com medo de tropeçar.
-Sobre seus pais. – Paramos no segundo
andar e Will abriu a porta do que parecia ser um escritório. Ele pegou dois
livros grossos de capas pretas e colocou sobre a escrivaninha. Sentou-se na
cadeira atrás dela e eu me sentei numa poltrona branca almofadada perto da
mesa.
O escritório tinha paredes claras, no
tom de areia, perto da única janela tinha um vaso de lírio da paz, apenas com
um botão jovem e suas folhagens largas e bem verdes se destacavam na sala. As
cortinas tinham tecido marrom escuro, mas estavam amarradas na lateral. À
direita tinha um armário com portas pequenas, parecia àquelas gavetas onde se
guardam evidências em delegacia. À esquerda tinha uma estante cheia de livros,
pastas e na parte inferior havia duas portas pequenas. Foi de lá que Will tirou
os livros. A escrivaninha era escura e a cadeira que ele estava sentado também.
-Você sabe o que aconteceu com eles? –
Arrisquei perguntar enquanto olhava para minhas mãos apoiadas nas minhas
pernas.
-Seu pai se mudou para nossa rua um
pouco antes de sua mãe fazer 15 anos. Nós conversávamos muito e eles acabaram
se aproximando – Ele fez uma pausa e riu um pouco – Eu fiquei tão enciumado que
na festa de aniversário dela eu levei uma menina que ela não gostava. – Ele
abriu um livro e vi que era um álbum de fotos. Will levantou-o e me mostrou uma
foto. Nela havia um garoto ajoelhado. Ele usava um terno e segurava a mão de
uma menina de cabelos castanhos claros vestida num vestido de debutante cor de
rosa. Eles eram meus pais. – Depois dos parabéns ele se ajoelhou e perguntou se
ela aceitava ser a mulher dele para o resto da vida.
-Que lindo.
-Dois anos depois seu pai foi
transformado. Ele fugia daqui algumas noites pra encontrar sua mãe.
-Papai foi vampiro? – Coloquei os pés
em cima da poltrona.
-Sim. Na pré-transformação os vampiros
ainda tem alguns comportamentos humanos, isso acaba quando se chega aos 20 anos.
Antes do seu pai se transformar totalmente sua mãe descobriu que estava
grávida. E assim que você nasceu ele passou pela transformação completa e teve
que parar de encontrar com ela. Sua mãe ficou arrasada, ela pensou que seu pai
fosse a abandonar pra sempre. Você estava com cinco meses quando seu pai
apareceu à noite no meu quarto pra me transformar. Depois ele pediu pra ir te
ver e sua mãe acabou acordando, ele teve que contar tudo.
-E a minha mãe teve que morrer por
saber de tudo?
-Não. Depois disso acabou acontecendo
várias reuniões e queríamos transformar sua mãe, mas ela corria o risco porque
não iria passar pela pré-transformação.
-Ela foi transformada?
-Foi. Mas ela começou a ter febre alta
com muita frequência, ela perdia o controle quando sentia cheiro de sangue.
Trouxemos você junto com ela e um dia Tab teve uma crise, surtou. Te levou pra
cidade, deixou você com a mamãe e simplesmente sumiu. Ninguém queria aceitar,
mas não teria como ela sobreviver sem que nós soubéssemos...
-E meu pai?
-Ele começou se culpar pelo que
aconteceu com sua mãe. Ele quis ir atrás dela, mas nós conseguimos convencê-lo
de ficar e cuidar de você.
-E por que ele sumiu também?
-Ele não conseguiu se recuperar da
ausência da sua mãe e então parou de tomar sangue e ficou frágil. Ele ficou com
raiva dos vampiros e disse que aqui não era lugar pra você, te levou outra vez
pra morar com a sua avó e me obrigou a ir junto. Quando Heitor descobriu que eu
estava morando na cidade tive que voltar.
-Que explicação você deu à vovó?
-Ela acha que eu fui morar na
universidade junto com seu pai e depois levamos Tabata. Só que achamos que não
era muito bom pra uma criança e Tabata te levou, seu pai estava de “férias”,
ele e sua mãe foram te buscar pra viajar e depois perceberam que você fazia
falta. Eu, aparentemente, me formei e até conseguir um emprego fui pra lá com
você, seus pais estavam ocupados e você teve que ficar.
-Vovó não está preocupada comigo?
-Ela já deve desconfiar de algo,
querida. Não se preocupe. – Willian me lançou um sorriso confiante.
-Isso é deprimente Will. Não é justo
com a vovó perder dois filhos, o genro e a neta.
-E o marido.
-Vovô?
-Sim, meu pai também sumiu da noite
para o dia, mas ele não foi vampiro.
-Por que fazemos isso com a vovó?
-Não temos escolha. Heitor é bem
rigoroso, muito detalhista. Ele sempre faz a escolha certa.
-Quem é esse tal de Heitor? – Will deu
uma risadinha como quem não quer nada.
-Heitor é o nosso mestre. O mais sábio
dos vampiros.
-Ele quem toma as decisões?
-Sim, ele manda e desmanda.
-Ainda acho injusto com a vovó.
No instante em que Willian ia rebater
outra vez, ouvimos algumas batidas na porta.
-Entre. – Will tirou os olhos de mim
lentamente até direcioná-lo a porta que se abriu vagarosamente.
-Com licença – Uma moça muito bonita
deu um passo adentro. Estava com uma calça, uma camiseta e um jaleco brancos,
tinha um estetoscópio pendurado no pescoço e estava com uma lista na mão. Seus
cabelos escuros estavam presos por cima e seus olhos castanhos tinham um brilho
diferente, era como se fossem escuros e claros ao mesmo tempo. Eles ficaram um
pouco arregalados quando ela me viu sentada em frente a Will – Estou
atrapalhando?
-Não Júlia, de modo algum. Essa é
Kelly, a nossa novata. Kelly, ela é Júlia, uma de nossas enfermeiras.
-Olá Kelly, seja bem vinda. – Ela me
lançou um sorriso meigo e se aproximou mais da mesa de Willian.
-Obrigada. – Abracei minhas pernas e
apoiei meu queixo sobre os joelhos e fiquei os observando.
-Cristina me pediu pra te entregar
essa lista de algumas coisas que estão acabando na enfermaria. Ela disse que há
um pouco de urgência. – Ela esticou o papel para Willian que segurou na outra
extremidade da folha. Um sorriso enorme brotou no rosto dos dois.
Willian fez alguma pergunta para ela,
mas eu não ouvi. A sensação que eu tinha tido pouco antes de tomar sangue
voltou. Me desfoquei da realidade e uma imagem com certa transparência revelou
os dois, eles estavam em pé, num lugar que eu não conhecia, seus rostos estavam
próximos, Will acariciava o rosto dela com as costas da mão. Eles se encaravam
firmemente e parecia que não queriam sair de lá nunca. Então Júlia me encarou,
parecia real e a imagem sumiu.
Os dois riram um pouco e se
despediram, Júlia me deu um sorrisinho e murmurou um tchau, caminhou
rapidamente até a porta e a fechou. Willian a encarou até o momento que o
trinco da porta fez um barulho, sinalizando que havia sido fechada.
-Você teve outra visão, não foi?
-Foi, como sabe?
-Seus olhos mudam quando isso acontece.
– Ele tocou um lápis no porta lápis e me olhou novamente – O que você viu?
-Não foi nada de importante. –Balancei
os ombros.
-O que era? – Ele me olhou
desconfiado.
-Você gosta dela?
-Não, nós somos só amigos. De onde
tirou essa ideia? – Willian não parecia mentir.
-Só perguntei. – Suspirei – Ainda acho
injusto com a vovó. – Levantei o pescoço ainda abraçando as pernas – Tenho saudades
dela.
-Eu sei, eu também sinto saudade, mas
não podemos fazer nada.
-Por que não a trazemos?
-Ela poderia ser atacada.
-E se a transformássemos?
-Sua mãe mal tinha completado 20 anos
e teve dificuldades, imagine minha mãe!
-Transformar com 17 anos é mesmo
importante?
-Sim, a pré-transformação é essencial.
Leva tempo até o organismo se acostumar com as mudanças.
-E por que eu fui transformada?
-Para que possamos te proteger.
-Proteger do que?
-Dos perigos do mundo. – Will desviou
o olhar e encarou o álbum – Nossa família era tão perfeita e de um momento para
o outro desmoronou. Papai sumiu, não sabemos se ele foi capturado por humanos ou se fugiu. Você se lembra dele?
-Sim, me lembro um pouco.
-Faz dez anos que ele te deixou com a
mamãe – Will suspirou – Tabata era tão linda. Éramos tão próximos, ela e seu
pai seriam o casal perfeito. No fim, todos viramos criaturas da noite.
-Você não gosta de ser vampiro?
-Eu gosto, mas tudo poderia ser
diferente.
-Mas por algum motivo não foi. Se
estamos aqui é porque há um propósito. Podemos não ser mais humanos, mas ainda
somos uma família e ninguém vai mudar nada – Abaixei as pernas e me levantei –
A menos que você se apaixone e esqueça de mim – Ri e me aproximei da mesa.
-Nunca vou te abandonar Kelly – Will sorriu.
-Muito bem – Fiz uma cara séria e depois
rimos, peguei os dois álbuns – Posso?
-Claro, mas traga-os de volta.
-Tá bem – Caminhei até a porta com os
dois álbuns num braço só. Sai do escritório de Will. Caminhei até a escada e
antes de descer o primeiro degrau ouvi uma voz familiar atrás de mim.
-Kelly, quer ajuda? – Thiago se
aproximou estendendo a mão.
-Ah, não precisa – Me virei para ele e
então Thiago tomou um dos álbuns do meu braço – Obrigada.
-Pra onde vai levar isso?
-Quando cheguei vi os banquinhos lá em
baixo e me encantei. Estava querendo voltar lá. – Comecei a descer.
-E o que é isso? Vai estudar? – Ele desceu
rapidamente até me alcançar e começou me acompanhar.
-Não exatamente – Sorri.
-Acabou de chegar e já vai aprontar?
-Não! – Ri e ele riu de mim.
-Quer que eu leve os dois? Eles são
pesados.
-Não precisa Thiago, eu aguento.
-Ah, é mesmo.
-Ah, é mesmo.
-Você guarda rancor? – A escadaria
acabou e caminhamos até a porta enquanto ria. Thiago me olhava fixamente como
se estivesse bravo comigo, passou na minha frente, abriu a porta e me deixou
passar.
Caminhamos um pouco até chegarmos ao
banco. Sentei-me e ele sentou-se ao meu lado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário